Na época do governo Fernando Henrique Cardoso, houve uma programação cultural aqui em Brasília, para a qual vieram, entre outros, o amazonense Boi de Parintins, o afoxé baiano Filhos de Gandhi e os cantores Daniela Mercuri e Gilberto Gil. Pelo final do primeiro dia de apresentações, a Comunidade Solidária da Dona Ruth Cardoso (quem quisesse brigar com ela era só chama-la por primeira-dama) ofereceu um coquetel aos artistas e à imprensa, na Granja do Toto, a antiga residência do presidente João Figueiredo, que a preferia para montar a cavalo. Desprezava o Palácio da Alvorada.
Lá pelas tantas, cheguei no Gilberto Gil, que já tinha respondido a tudo o que os meus colegaslhe perguntaram sobre o seu show - no dia seguinte - e falei-lhe de que gostaria de saber da verdadeira história da “marcha contra as guitarras elétricas” que rolara em São Paulo, na época do iê-iê-iê, pois já havia lido várias versões diferentes.
Calmamente, com uma pausa danada pra falar, ele respondeu-me que fora uma forma de apoiar Elis Regina que estava ameaçada (pela TV Record-SP), de ter o seu programa (Dois na Bossa, com Jair Rodrigues), tirado do ar, por causa da queda da audiência dominada pelos programas dos cabeludos, principalmente Roberto Carlos e Ronie Von.
Papo vai, papo vem, eu dissera ao Gil de que não entendia ele, um dia, tocar fogo nas guitarras elétricas e, no outro, ser o primeiro a introduzi-las na música popular brasileira – acompanhado por Os Mutantes. Ele mandou isso pra mim:
- Foi uma forma heideggeriana de passar menagens fundamentais. A nossa tarefa cultural-industrial-religiosa era tocar fogo no lixo cultural, com simplicidade, trombetas e um Exu Mensageiro, sempre emoliente, tratando de cataclismos, epicentros, apocalipse e da tropicália com caráter hot” – tenho isso guardado e gravado em antiga fita cassete.
Como não entendi nada do que ele falou, escrevi o que bem entendi, mais maluquice, ainda, pela minha matéria do Jornal de Brasília. No dia seguinte, no encerramento da programação, topo com o Gil ensaiando, com o seu violão, antes da sua apresentação. Ao me ver passando, pela área permitida à imprensa, gritou-me. Parei, olhei e ele disse:
- Meu bom! Onde você arrumou aquilo tudo que eu não falei?
- Foi o que entendi de tudo o que você falou – respondi.
-Tisconjuro! – baianizou no vernáculo e ficou por aquilo.
Algum tempo depois, Rita Lee estava em Brasilia pra fazer show e pedi a pauta da sua coletiva à imprensa. Depois que todos fizeram as suas indagações, eu disse-lhe que queria perguntar algo fora do contexto, sobre a “passeada contra as guitarras elétricas”. E falei-lhe sobre o que o Gilberto Gil havia me falado. Ela respondeu que não havia participado e complementou:
- Se o baiano falou, tá falado, mêu! Por aquele tempo, eu vivia chapadaça.
Era a primeira vez que a Rita Lee falava em público sobre o tema “viver chapadaça”. Só que a editora da minha matéria - a mesma que havia publicado a minha entrevista com o Gil - cortou a declaração ritaleeniana, sob a alegação de que “aquilo era um mau exemplo para os jovens”. E a matéria terminou insossa, em: “Se o baiano falou, tá falado, mêu!”
Algum tempo depois, a roqueira Rita Lee escreveu em um livro que, ao ter o seu apartamento invadido pela polícia, à procura de maconha, quando foi presa, dissera para os meganhas: “Se vocês tivessem vindo aqui há um mês teriam encontrariam muitos tocos de baseado pelo chão. Mas, desde que fiquei grávida, nuca mais acendi nada”.
Quer dizer: um furo de reportagem caiu em minhas mãos, mas uma editora conservadora tirou-me do lance. Esta mesma editora, tempos depois, podou de uma outra matéria minha a frase “Karl Max saía pra beber com os amigos e, quando voltava, bêbado, brigava em casa. Não raro, metia a porrada na mulher”. Segundo ela, a palavra “porrada” estava proibida pelo manual de reportagem do jornal – que nunca existiu. Quem era mais complicada: ela, ou o linguajar de Gilberto Gil?.
Publicado pelo Jornal de Brasília de 06.04.2025 e trazido para cá pelo Túnel do Tempo
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