Uma das instituições mais antipáticas surgidas no Brasil é a Liga dos Tudólogos. Vem lua, vai lua, o calendário muda e eles não desistem, não se mancam de saber que ninguém aguenta mais o Zé Sabe Tudo. Um dos maiores exemplos dessa antipatia foi dizerem que Pixinguinha estava americanizado quando compusera uma das suas peças mais importantes, o chorinho Carinhoso.
De acordo com o “intelectual tudólogo” que insinuou o disprate, pela revista
carioca Phono-Arte, o músico Alfredo Rocha Viana Filho teria composto a peça
com introdução de um autêntico fortrote,
exalando combinações da música popular made
in USA. Se isso influenciou a gravadora Parlhopon, que tinha Pixinguinhá
sob contrato, e, 1928, nunca se soube, mas o certo foi a fábrica não botar fé
no choro e o editar do Lado B de um
disco que apostava no maxixe Não diga não,
de Peri – queeemmm?, que teria composto algo excelente, tipicamente brasileiro, sentimental, ritmada e dançante.
Quem conhece Não diga não? De sua parte, Carinhoso tornou-se umas das canções mais regravadas e executadas da música popular brasileira. Pixinguinha garantia jamais ter-se influenciado pelas jazz-band norte-americanas, que conhecera durante temporada, de oito meses, em Paris. Impossível a americanização de Pixiguinha, em Carinhoso. Sobretudo, porque ele o escreveu entre 1916/1917, não se lembrava, ao certo, guardou e o esqueceu em uma gaveta. Não o mandando a público porque o fizera com só duas partes, quando, por covenção dos colegas músicos, teria de ter três. Por ali, ninguém se arriscava a fazer diferente.
Da mesma forma que viu
norte-americanismos em Carinhoso, o
muito antipático Zé Sabe Tudo o viu, igualmente, em Gavião Calçudo, que Pixinguinha compôs em parceria com Cícero de
Almeida. Para o tudólogo, seria muito
mais foxtrote do que brazuquice, “com melodia, contracanto e ritmo importados”.
Pra piorar: o tudólogo viu, ainda, o
compositor espanholando, na valsa Bianca, que Pixiginha a compusera homenageando
uma amiga artistas de cabaré.
Pixiguinha encantava Paris, com a sua flauta,
pelo grupo Oito Batutas, que tinha ao violão, banjo e cavaquinho o seu grande
amigo Donga, autor do primeiro samba gravado no Brsil, Pelo Telefone. Certa noite, ao terminar de trabalhar (no dançante Sheherazade),
ele foi a uma outra casa de shows,
com o mecenas Eduardo Guinle, patrocinador da excursão dos Batutas. Gostou da
performance de um sujeito que tocava violino durante parte do show e, na outra,
pegava no saxofone para executar o shimmy, coreografia
de sapateados, com variações. Guinle o indagou-se ele seria capaz de
tocar o sax, ouviu o sim e a explicação de a escala ser igual à da flauta. E
presenteou-lhe com o instrumento, que experimentou aante o amigo. Só o tocou mesmo
no Brasil, escandalizanado os tudólogos sabem-tudo
que não o aceitaram vê-lo desflautado e
saxofonizado. E se vingaram do que declararam “traição à música
brasileira”, vendo-o enfeitiçado, em Paris, pelas jazz-band.
Carinhoso não teve uma trajetória das mais tranquilas, até se tornar um autêntico hino da música popular brasileira. Ganhou letra, de João de Barros, o Braguinha, por sugestão da cantora/copositora/atriz Heloísa Helena, para ela apresentar-se durante programação da primeira-dama Darci Vargas, em benefício de carianças carentes. Antes, o compositor paulista Benoit Certain o havia feito, e até cantara, em rádio, mas não agradou ao autor e tudo foi esquecida. Por ter a letra do Braguinha agradado ao Pixinguinha, este propôs gravação à RCA Victor. Mas os cantores convidados – Francisco Alves e Carlos Galhardo – não toparam. Sorte de Orlando Silva, que a gravou, em 28 de maio de 1937, acompanhado por piano, flauta, violão, contrabaixo, cavaquinho, dois clarinetes e bateria, com arranjos por Pixinguinha, dividindo a orquestração para o cantor com Radamés Gnattali, que tocou o pliano. Se Orlando já era o cantor mais popular do país, depois daquela gravação nem se fala. Poucas de suas interpretações tiveram tanto sucesso.
Em 1938, Pixinguinha, ainda, trabalhava
para a RCA Victor – também, para a Rádio Mayrink Veiga. Quando a gravadora aumentou
o seu quadro de arranjadores e regentes, os tudólogos espalharam que ele havia perdido
espaço para Radamés Gnatalli, por este ter ficado em alta, devio ao seu elogiadíssimo
arranjo, com dois violinos e um celo, para Lábios
que beijei (de Leonel Azevdo e Jota Cascata) e, mais ainda, “por não saber
escrever música para instrumentos de cordas”. Sua resposta: escreveu um
arranmjo, para Carinhoso, com todos
os timbres possíveis de uma grande orquestra, destacando cordas de violino, viola e violoncelo. E o, que
falavas demais, passou uns tempos falando de menos.
Carinhoso poderia ter maior projeção no
exterior, onde teve várias gravações, caso o violonista/cantor Aloysio de Olivera
(do Bando a Lua, responsável por grande parte dos sucessos de Carmem Miranda),
não tivesse feito a cabeça de Walt Disney para trocá-lo por Na Baixa do Sapateiro, de Ari Barroso. Disney
gostara muito da canção, que estava orquestrada e ensaiada, por Aurora Mianda (irmã
de Carmem) para fazer parte da trilha sonora do filme The three caballeros que, por aqui, foi titulado por Você já foi à Bahia? Pixinguinha levou
uma monumental rasteira, quando era considerado pelo chato, enquenqueiro e vira-casaca
Ari, o maior compositor brazuca.
K pra nóiz: seria interessante ouvir e ver uma jaz-band executando Gavião Calçudo, com solos de sanfona por conta de João Bandeira, aquele músico nordestino da cearense Limoeiro do Norte. Vá lá que a Bosssa Nova tenha flertado com o jazz, mas imaginar Pixiguinha foxtrotando seria o mesmo que bater um pênalti e mandar a bola lá na bandeirinha do escanteio. Confere?
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